São Paulo, janeiro de 2020 -
Encontro com a cidade, depois de um distanciamento de espaço e tempo de aproximadamente nove meses. A chegada foi em dezembro, o que considero um mês de resiliência e resistência. Não foi fácil o deslocamento, porque muito de mim continua lá, na América Latina do hemisfério norte - México. Foi um período de nove meses de intenso trabalho com o som e com a voz, de intenso trabalho de escuta, de mim, dos espaços que percorri, das pessoas que conheci.
Percebo o mundo muito através da escuta. Isso é necessário para minha expressão. Meu material é o som, a voz, o corpo. As pesquisas em voz, e principalmente a Escola do Desvendar da Voz, foram as primeiras que deflagraram em minha escuta uma maneira de perceber o mundo. Através da vibração do ar, das membranas do corpo (cordas vocais, tímpanos), da pele. O canto precisa da escuta. Escutar a voz me ensinou a escutar o ar ao meu redor, e conhecer uma pele do som, que amplia meu corpo no espaço. Uma pele porosa, permeável, mas ao mesmo tempo uma borda, uma membrana, um limite. Compreendo que minha voz sai do meu corpo rumo ao espaço que ocupo, para todas as direções, pois seu movimento faz todo o ar vibrar. Ao mesmo tempo, qualquer som ao meu redor ressoa também em mim, em meu corpo, vindo de diversas direções e ocupando meus arredores, ainda que não possa vê-los.
Viajei com voz e escuta, coração e ideias. Aberta e vulnerável, mulher sozinha viajando, mulher sozinha no México, mulher sozinha de noite na rua, no transporte público. Lugares que conhecia de ir uma vez, lugares novos, tudo muito mais novo do que conhecido. Trago na bagagem, horas e horas de gravações de deambulações pelas ruas, principalmente da Cidade do México. É notória a presença de muitas buzinas, sons de veículos, em algumas cidades com praças o canto dos pássaros ao cair da tarde (ensurdecedor), sinos e os muitos pregões urbanos, “voces callejeras”, sons que nos convidam todo o tempo a olhar, a passar, a nos relacionar. Ouvir o novo me ensinou novas maneiras de escutar. Essa mudança causou em mim uma abertura para como eu compreendo minha escuta, bem como para o que ela me ensina.
Cantar o caminho:
Por dois meses eu repetia um mesmo trajeto a pé, na Cidade do México, toda quarta-feira, no mesmo horário, saindo da casa onde vivia para o espaço onde compartilhava minhas oficinas de voz e percussão corporal. Certo dia decidi cantar meu caminho, e fiz a seguinte proposta a mim mesma: o canto, ou os sons que eu emitia, deveriam ser totalmente contagiados pela paisagem sonora que me atravessasse e penetrasse. Assim, a tonalidade e inflexão das vozes, o ritmo das buzinas, os cantos callejeros, sons de veículos (ônibus e motos), tudo o que eu percebesse enfim, seriam potenciais deformadores e/ou transformadores do meu canto/som/voz.
Nesse dia, lamentei não ter um gravador. Nesse dia também agradeci não ter o gravador. Guardo na memória a experiência de uma escuta vívida, criativa, atenta, aberta e curiosa. Uma escuta ampla, omnidirecional, disponível. Nesse dia, a paisagem sonora fez outro sentido para mim. Foi como se os sons mais interessantes tivessem acontecido somente naquela ocasião, apenas e pelo simples e complexo fato de eu escolher cantar meu caminho dessa maneira.
Alguns dias depois, uns amigos me contaram de um tipo de exercício de improvisação, chamado improvisação psíquica. Nesse exercício, tudo o que você improvisa está apenas em sua cabeça, você escuta e interage com os sons, mas não manifesta sua interação no ar. A improvisação é puramente psíquica, sonora para dentro, silenciosa para fora. Somei essa prática às minhas derivas, e saí nas ruas da CDMX gravando e improvisando silenciosamente. De fato, a incrível sensação de frescor da escuta, que havia experimentado antes, se renovou. Repeti essa experiência algumas vezes, gravando e não gravando. A escuta me fez querer andar mais, viver os locais que visitei e habitei de outras maneiras, deambular, sem rumo ou propósito, apenas pelo prazer da escuta.
Agora, aqui, com essas novas maneiras, novas perguntas, venho escutando São Paulo. Primeiro de tudo, tenho um estranhamento e uma curiosa saudade… a CDMX, grande, complexa e louca, carrega em seus espaços aéreos e urbanos uma instigante mescla de sons de um mundo industrial, mecanizado, motorizado e bruto ao mesmo tempo que preserva cantos e pregões, vozes quase ancestrais que ecoam desde os antigos mercados de rua, um quê artesanal. Essa São Paulo que ouço, hoje me parece abafar suas vozes. Será que minha escuta mudou? Arrisco dizer que sim.
CDMX abr 2019 - primeiro contato com a cidade, impactada com sua visualidade e paisagem sonora
CDMX jul 2019 - Idéias para uma improvisação psíquica: como soa essa imagem?